Luto e Celebração de Espécies e Sítios Desaparecidos
PORQUÊ CELEBRAR UMA ESPÉCIE DESAPARECIDA?
Dia Internacional de Luto e Celebração de Espécies e Sítios Desaparecidos
No dia 30 de novembro de 2018, no âmbito de uma iniciativa internacional, foi evocado o desaparecimento de uma espécie, um mamífero dos mares de Bering, extinta pelos seres humanos em 1768. Referimo-nos ao dugongo-de-steller (ou vaca-marinha-de-steller).
A iniciativa internacional, a que os signatários aderem, é uma manifestação de luto e pesar (que todos os anos evoca uma espécie diferente), mas é também uma celebração em que cabe alegria e esperança. Alegria pela biodiversidade em toda a sua abundância (mais que nunca ameaçada, é certo). Esperança de que a humanidade possa ainda parar a desenfreada corrida à extinção de tão numerosas espécies, vegetais e animais, perseguidas pela avidez humana e pela ganância financeira, que poderá, no limite, conduzir à extinção da própria humanidade.
Celebrar e defender os mares
A escolha de um animal marinho extinto para a celebração de 2018 permite este ano destacar o estado da biodiversidade marinha e a situação dos oceanos. A opção deveu-se à atenção e atmosfera ultimamente geradas na opinião pública quanto ao meio marinho, com o aumento da consciência e preocupação com a saúde dos oceanos, destacando-se a poluição por microplásticos e sua entrada na cadeia alimentar (a que os seres humanos também não escapam) e por objetos de plástico de todos os tipos, qualidades e dimensões (e não apenas microplásticos), com repercussões na morte e na contaminação profunda de animais marinhos emblemáticos, como tartarugas e baleias, além de outros.
Em Portugal
Propomos associar a esta temática, no nosso país, entre outros os seguintes aspetos:
- a enorme diminuição das
populações de cavalo-marinho na Ria Formosa (Algarve), lugar onde a espécie era
abundante e onde agora se encontra em acelerado declínio que a pode levar à
extinção nessa zona
- a recente revelação, pelo
Tribunal de Contas, de que às 29 reservas marinhas portuguesas não foram até
agora atribuídos meios que lhes permitam cumprir o papel de conservação para o
qual foram criadas
- a pressão que se tem vindo a
fazer sentir, e que provavelmente se virá a acentuar, para a exploração
desenfreada dos fundos marinhos, na nossa zona económica exclusiva, seja para
prospeção de combustíveis fósseis e futura exploração, seja para a extração
maximizada de elementos minerais para a indústria, atividades que arrastam
consigo quase fatalmente ocasiões de contaminação grave dos mares e do litoral
adjacente.
Na evocação do extinto dugongo-de-steller simbolizamos o repúdio de todas as formas de agressão à vida marinha. Na evocação do cavalo-marinho da Ria Formosa, chamamos autoridades e cidadãos a levarem bem a sério a defesa da biodiversidade dos mares.
Para isso, é necessário
- impedir o extrativismo dos
fundos marinhos (combustíveis fósseis e minérios) e a contaminação dele
resultante
- dotar de meios eficazes as
nossas reservas marinhas para que possam de facto ter um papel de relevo na
conservação
- incentivar a consciência do
caráter intolerável de todos os tipos de contaminação dos mares e do imperativo
de exercer sanções eficazes e dissuasoras sobre os responsáveis por essa
contaminação.
Em complemento deste texto, vejam-se abaixo mais informações sobre o dugongo-de-steller, sobre o cavalo-marinho da Ria Formosa e sobre o Dia Internacional de Luto e Celebração das Espécies Desaparecidas.
A Associação Famalicão em Transição e a Campo Aberto- associação de defesa do ambiente, co-organizadoras dos dois encontros de 2017 e 2018 no espírito da Carta de Famalicão, associam-se ao Dia Internacional de Luto e Celebração das Espécies e Sítios Desaparecidos e convidam todos os coletivos e pessoas interessados a repercutir essa celebração pela forma que considerem mais conveniente.
Dugongo-de-steller, vaca-marinha-de-steller
Desde há dois séculos e meio, vivemos sem a companhia desta espécie, perseguida e caçada até à extinção.
Tem como nome científico Hydrodamalis gigas. É um mamífero marinho da ordem Sirenia que habitava o mar de Bering (extremo norte do Oceano Pacífico). Foi descrito pela primeira vez pelo naturalista alemão Georg Steller em 1741.
Era herbívoro e o seu habitat preferencial eram os ambientes costeiros de águas frias e pouco profundas. Gregário, vivia em manadas, perto dos estuários e foz dos rios. Quando foi descrito, seria já uma espécie relativamente rara. Passados 27 anos, estava extinta, o que ficou a dever-se à chegada ao mar de Bering de pescadores e colonos europeus. A extinção foi acelerada por um caso clássico de rutura do equilíbrio ecológico: os pescadores e caçadores provocaram forte diminuição das populações de lontras-marinhas, para as quais o ouriço-do-mar era o alimento predileto. Seguiu-se a explosão populacional dos ouriços que se alimentavam da mesma vegetação que o dugongo-de-steller, e a competição entre essas espécies levou à escassez de alimento para o dugongo. A caça ininterrupta fez o resto.
Tentando evitar o desaparecimento, em 1755 foi proibida a caça da espécie na região. Dado o declínio acentuado em que já se encontrava, e o não cumprimento da proibição, o dugongo-de-steller extinguiu-se em 1768 com a caça dos últimos exemplares conhecidos.
Celebração
Na época da extinção do dugongo-de-steller, o desaparecimento de espécies animais e vegetais devido à ação humana não era ainda sentido como uma perda irreversível para a humanidade, como um crime ecológico, como uma manifestação insuportável de prepotência sobre as outras espécies vivas, como um rombo na biodiversidade e sinal ameaçador para a nossa própria espécie.
A nossa consciência coletiva a esse respeito mudou entretanto. Ou antes, começa muito lentamente a mudar. A extinção de espécies entristece e preocupa hoje boa parte das populações humanas esclarecidas. Mas só uma minoria entre elas tem bem presente que, na maior parte dos casos, o que é decisivo para evitar a extinção é preservar a integridade e sanidade dos habitats que lhes são favoráveis.
Encorajar a resistência à destruição dos habitats quase sempre motivada pela ganância de poderosos interesses minoritários, é contribuir para manter vivas e prósperas as populações vegetais e animais que os habitam.
Devemos isso também à memória do dugongo-de-steller.
O cavalo-marinho da Ria Formosa (Algarve)
O seu nome científico geral, Hippocampus, denota um género de peixes ósseos da família Syngnathidae. Vive em águas marinhas temperadas e tropicais. De cabeça alongada, com filamentos que lembram a crina de um cavalo, nada com o corpo na vertical.
A Ria Formosa (Tavira, Olhão, Faro) era em 2002 um dos locais do mundo com maior densidade de cavalos-marinhos. Calcula-se que a população chegava aos dois milhões de indivíduos. Mas o declínio foi rápido. Em 2008, sobrariam apenas 300 mil.
A razia despertou a curiosidade dos investigadores. Surgiu o projeto «Cavalos-marinho em risco na Ria Formosa?», uma parceria entre a Universidade do Algarve (Grupo de Investigação em Biologia Pesqueira e Hidroecologia, do CCMAR - Centro de Ciências do Mar) e a University of British Columbia (Canadá) junto com a Zoological Society (Londres), através do Project Seahorse.
Segundo o ICNF - Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas, «ao ser uma espécie indicadora da qualidade ambiental, [o cavalo-marinho] funciona como um alerta para as ameaças que o sistema lagunar da Ria Formosa enfrenta».
O declínio brusco das populações de Hippocampus hippocampus e de Hippocampus guttulatus, as duas espécies que predominam nessa zona algarvia, deriva da degradação ambiental, da captura acessória em artes de pesca, da sobre-exploração causada pela aquariofilia e de certos usos de medicina tradicional chinesa. Embora haja ainda incógnitas, foram também identificados fatores como poluição sonora subaquática, pesca ilegal, extração de areias, dragagens descuidadas, circulação descontrolada de embarcações de recreio, entre outros, que provocam a quebra continuada destas populações. Atualmente, os 1,3 milhões existentes em 2001 poderão ter descido a cerca de 155 mil.
Ora a Ria Formosa é um Parque Natural, o que leva a diretora do Project Seashore, parceiro da Universidade do Algarve, a concluir e sugerir que tais ameaças não deveriam estar a acontecer. «Neste momento, Portugal não está a dar a atenção devida à população de cavalos-marinhos na Ria Formosa. Gostaria de ver mais responsabilidade», comenta Amanda Vincent, da Universidade da Colúmbia Britânica.
O cavalo-marinho como inspiração
Para evitar que o cavalo-marinho da Ria Formosa siga o mesmo caminho do dugongo-de-steller, podemos fazer dele um símbolo que nos alerte e ao nosso povo, e às autoridades, para uma nova atitude perante os mares, em defesa e reforço da sua biodiversidade.
Há quem veja no mar apenas novas oportunidades de negócio, novas corridas sem limites à exploração e à acumulação contínua de «riquezas» e a isso se reduz por vezes a sua «política do mar». A nós cabe-nos a tarefa de, tal como em terra, alertar para os sinais de agressão aos sistemas vivos e para a necessária salvaguarda dos habitats e das espécies.
Dia Internacional de Celebração e Luto de Espécies e Sítios Desaparecidos
Verificado o espírito com que surgiu a organização desse dia de memória (30 de novembro de cada ano) concluímos que, numa adaptação na nossa língua, lhe poderíamos com propriedade chamar Dia de Luto e Celebração de Espécies e Sítios Desaparecidos (Remembrance of Lost Species Day). Mais pelo espírito do que pela letra, visto que a expressão inglesa está associada e pretende testemunhar a perda da biodiversidade - para melhor poder contrariá-la.
Sim, porque o pesar, o luto, precisamos de os transformar em celebração da vida. Lembrar, não apenas as espécies mas também os habitats ou sítios - pois é em geral a destruição ou contaminação destes que acarreta a extinção daqueles.
A iniciativa internacional não propõe qualquer organização rígida. São apenas sugeridas iniciativas que cada grupo, formal ou informal, pode lançar autonomamente. Uma forma de o fazer é dando eco ao caso da espécie desaparecida celebrada no ano em causa (ou sítio). Em 2018 foi o dugongo-de-steller. Mas no contexto dos oceanos a preferência poderá ser outra ou outras espécies marinhas.
Outras iniciativas podem ser lançadas. Iniciativas da mais diversa índole podem ser promovidas com este traço de união: um tema, uma legenda, um logotipo comuns, e o mais que cada iniciativa tomar a seu cargo.